Sinal de tempos conturbados, interna e externamente, aparece-nos uma capa branca, expressão nenhuma de quem não consegue convergir numa só imagem e numa só aproximação. Eis a mais escrutinada e polémica obra de sempre.
The Beatles
(the White Album) - 1968
Depois da revolução que havia sido Sgt.Peppers, não havia quem não sentisse um certo aperto com a eventualidade de um novo album. Aquela singularidade era inultrapassável e mundo divorciava-se, enfim, do verão do amor que Pepper havia ajudado a criar.
O que havia de surgir, sob a forma de um duplo album, seria não tanto uma entidade em si, mas um conjunto de músicas, sem sequência lógica (excepto a última), sem estrutura, de todas as formas, de todos os géneros. Seriam no entanto, algumas das melhores do seu vasto reportório.
Numa época pródiga em quantidade de composições, nomeadamente devido à viagem espiritual (para alguns) à Índia, foi decidido não deixar qualquer uma de fora, o que deu origem a um conjunto instável, que nunca sendo coeso, se tornou numa unidade confusa e estilisticamente diversa.
O 1º disco, que começa com o vivo e vibrante "Back in the USSR" de Paul, é talvez o melhor pelo brilhantismo de composições como "While My Guitar Gently Weeps" de George, "Blackbird" de Paul e duas de John, a linda balada "Julia" e o rico "Happiness is a Warm Gun". Não se esgota aqui a qualidade. O invocativo "Dear Prudence" é fantástico na aproximação gentil que faz à vida, "Glass Onion" desafia ironicamente o mito "beatlesco" e Paul tem em "Ob-la-Di Ob-la-Da" uma das suas famosas canções e em "Martha My Dear", "Rocky Racoon" e "Why Don't We Do It In The Road" das mais interessantes, a primeira por força da riqueza musical e a duas últimas pela inovação temática, crueza e originalidade.
O lado 2, apesar de menos interessante musicalmente, é também pleno de inovação. O proto-metaleiro "Helter Skelter" redefiniu a ideia de pesado, "Everybody's Got Something to Hide Except For Me and My Monkey" segue a mesma onda de "Why Don't We...." na simplicidade da letra mas é musicalmente apelativo pela inteligência rítmica e vivacidade. Encontramos até John fazendo um blues repressivo e zangado com "Yer Blues" e orquestrando uma das mais interessantes composições musicais do albúm, com "Sexy Sadie", uma suave nota de culpa, melódica e polémica, devido à associação com o guru Maharishi.
Outras faixas de referência são "Revolution 1", uma mensagem política contra a revolução violenta que muitos achavam necessária naqueles tempos conturbados (procure-se no You Tube uma versão mais acelerada), "Long Long Long", que é uma das mais sub-estimadas canções do grupo e "Savoy Truffle", que prima sobretudo pela piada.
Se não se concordar com a sua qualidade, concorde-se quanto á riqueza e modernidade dos temas, com a sua intemporalidade e, sobretudo, com a forma como esta é uma obra do seu tempo. Nós, que vivemos na era do cd e do mp3, podemos ignorar as faixas (e lados) que menos gostamos, mas aconselho a que ouça, pelo menos uma vez, o album na sua integralidade desconexa, e se aprecie, à "moda antiga", a experiência musical que é uma das obras mais polémicas e marcantes de todos os tempos.