26/02/2008

Rubber Soul . The Beatles

O albúm que marca o ponto de viragem, tanto técnico como tématico. É aqui que se abrem novos horizontes e se acaba definitivamente com a ambiência teeny-pop. O estúdio deixa de ser um ponto de paragem e passa a ser laboratório de alquimia, onde novos sons iriam aparecer e toda uma nova maturidade iria despontar.









Rubber Soul, 1965










Já cansados da "Mania" e a ficar impacientes face às suas imposições castrantes, os Beatles decidiram fazer uma pausa mais prolongada. O encantamento inicial desvanecia e agora, com a aprendizagem, todo um novo universo lhes passava em frente dos olhos. Muito por culpa de Dylan, que haviam conhecido na América, começaram agora a virar as suas composições para si mesmos, para a dimensão séria das suas relações e até para a dispersão que sentiam nas suas mentes.

O machismo invertido de "Drive My Car", com o seu jazz piano do refrão, e o intimisto exótico de "Norwegian Wood" alertavam-nos de imediato para todas estas mudanças. A cítara de George em "Norwegian Wood" é o ingrediente essencial de uma composição marcada pela ambiguidade, e pelo relato intimista de um "affair" de sentido único. A presença feminina seria, no entanto, irradiada em "Nowhere Man", com a suas intricadas harmonias vocais e o seu poder de fazer, ao mesmo tempo, uma auto-análise e uma crítica à apatia quotidana de uma sociedade que só agora começava a irradiar inovação.
"Think for Yourself", a melhor composição de George até à altura, continua na mesma onda de pensamento, criticado quem não tem auto crítica e quem segue as pisadas de outrém sem questiona, contribuindo para o vazio que "Nowhere Man" já tinha referido. De nota a lead guitar, que acompanha eficientemente a narrativa.
"The Word" é, talvez, a única música confessamente composta sob o efeito de marijuana. O amor salvar-te-à, o meu piano psicadélico far-te-à dançar, e somos extremamente positivos na nossa visão (mocada) do mundo. Amén a isso.
No que se refere a músicas românticas, temos duas peças muito diferentes, ambas marcadas por um estilo completamente diferente do que haviamos visto até aí. "Michelle" é de Paul, e portanto é doce, romântica e apaixonada, com elementos dissimuladamente franceses a apimentar ambiência. "Girl" é de John, em down-tempo, densa e dolorosa, mas nem por isso é menos apaixonada. De notar a panóplia de elementos que a compõem, e que a tornam riquíssima e um dos melhores temas do albúm.
Mas esse título estaria sempre e inevitavelmente reservado para "In My Life", que pessoalmente, considero umas das mais bonitas músicas jamais feitas. Não há ninguém que fique indiferente ao tema, e que com ele não se identifique, e não há ninguém que fique indiferente à sua doçura. A sua aparente simplicidade é contagiante, e apaixonante é a forma com nos transmite o calor da mensagem, que faz todo o sentido, em todas as alturas do mundo, seja para quem for.

Rubber Soul é intimista do início ao fim, e pela primeira vez se mostra a verdadeira identidade destes 4 rapazes, que aqui apelam, ainda com toda a energia, a outras dimensões do que vai dentro de cada um de nós, reflexo do que começava a tornar-se importante dentro deles. Uma obra verdadeiramente universal, como foram todas, daqui em diante.

16/02/2008

Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band . The Beatles

Descrito uma vez como "um momento decisivo na história da civilização ocidental", este albúm é, simplesmente, o ponto mais alto de um período de experimentação que tinha começado com Rubber Soul. É o cúmulo brilhante das novas tendências e uma revolução na maneira de ouvir música. Eis o que muitos consideram o mais influente albúm de sempre.








Sgt. Pepper´s Lonely Heart Club Band, 1967








Estamos no âmago da época psicadélica, da revolução cultural, onde novas ondas de pensamento e uma forte propensão à experimentação estavam no ar. O movimento hippie começava aganhar forma e a juventude do baby boom começava, finalmente, a mostrar a sua garra.
Entretanto a maneira de fazer música começava a mudar aos poucos, em grande medida pela influência de Bob Dylan, das suas letras e temas introspectivos e mordazes e de um constante brotar de novas bandas que surgiam prontas a inovar.

Entretanto, os Beatles, que haviam abandonado os espetáculos ao vivo para dedicarem mais atenção à qualidade artística da sua música, demoravam a lançar novo material. Revolver já havia saído há muito tempo, e a especulação era muita acerca de um possível esgotamento criativo ou até mesmo do fim da banda. A fasquia estava alta, especialmente depois do lançamento do eclético "Pet Sounds" dos Beach Boys, que em muito havia de influenciar a instrumentação do novo albúm. No entanto, na altura, ninguém tinha noção do que iria sair dos estúdios de Abbey Road.

A capa, eminentemente psicadélica, cheia de vivacidade e cor, funciona como que um "mood-setter" para um conceito de albúm que, apesar de não se confirmar plenamente, não deixa de ser convidativo. A introdução, homónima do albúm, é um autêntico prólogo ao vivo, ritmado e intenso, que apresenta Sgt.Pepper e a sua banda. Este dá seguimento ao "act" de Billy Shears, que é Ringo cantando "With a Little Help From My Friends", um lamento optimista face às agruras da vida e aos julgamentos exteriores, devidamente acompanhado pelas vozes em coro dos seus amigos. Até ao Reprise, não vamos ter mais qualquer menção ao conceito que parecia seguir forte até aqui e que surgiu, lembre-se, com o objectivo de levar um concerto ao vivo à casa de cada um.

Facilmente se esquece o desmoronar do conceito, com "Lucy in the Sky With Diamonds", um hino à psychadelia onde somos convidados a viajar por um estranho mundo, repleto de cores, texturas e vibrações. Composta maioritariamente por John Lennon e baseada num desenho do filho Julian, esta é uma música que verdadeiramente nos faz viajar e nos pinta quadros coloridos na mente, especialmente nas partes em que a guitarra acompanha, nota a nota, a voz (acelerada) de John. A instrumentação também é de particular nota, prestem atenção à variedade de sons que conseguem distinguir.

"Getting Better", de Lennon e Mccartney, é outro hino ao optimismo face à adversidade. John tem aqui, para tipicamente sua, mordaz e sarcástica linha "It can´t get no worse", uma nota autobiográfica depois do segundo refrão, onde admite ter sido abusivo para as mulheres da sua vida. Interessante a forma como, de repente, nessa parte, toda a música fica mais escura e o tom menos colorido. Excelente.

"Fixing a Hole" trata de dispersão mental e dúvida existêncial, procurando-se um rumo, algo não derivativo, para se obter auto definição. Cheia de variações melódicas que acompanham a narrativa, e com uma excelente utilização do cravo (harpsichord), esta é uma música revolucionária não só pela musicalidade mas como pelo tema abordado.

"She´s Leaving Home" é uma magnífica composição harmónica de Paul Mccartney sobre a fuga de casa de uma adolescente a quem se havia dado tudo, menos liberdade. Particularmente focada na reacção dos pais, especialmente nos lamentos do refrão, este é outro tema que foge completamente de qualquer conceito mainstream daquele tempo. Brilhante.

Mas mesmo revolucionária é "For the Benefit of Mr.Kite", totalmente inspirada num poster de circo do século XIX, encontrado por Lennon numa loja de velharias. Virtualmente TODA a letra foi directamente extraída do poster. A criação de uma ambiência adequada ao majestoso caos circense é conseguida com o recurso a um sem número de elementos impensáveis, mesmo na altura. Gravações revertidas, harmónicas, cravo, sons de feiras populares, tudo se conjuga de forma magnífica para pintar um verdadeiro quadro de som, no qual somos facilmente imersos ao longo de dois minutos e meio de pura magia. Assim acaba do lado A.

"Within You and Without You" é a melhor música de influência indiana de George (do conjunto de cerca de 3 ou 4 que possuem tais elementos). Sensual e com uma linda letra, juntou de forma brilhante dois mundos totalmente diferentes e opostos.

"When I´m Sixty-Four" não é exactamente uma música do seu tempo uma vez que tinha escrita por Paul já há muito tempo, mas é doce e humilde como poucas. A prova de que pouca pretensão e simplicidade também fazem uma muito boa música. Atenção à instrumentação.

Mais complexa e brilhantemente produzida é "Lovely Rita", sobre uma polícia de trânsito americana que (diz-se...) fascinou Paul. Apesar de não ser particular fã da letra, gosto imenso da orquestração vocal, da fantástica bateria e da parte final, onde parecem todos estar sob o efeito de drogas alucinogénicas. Tema riquíssimo.

"Good Morning" não é exactamente uma favorita, isto porque me parece que o uso de imensos complementos sonoros e efeitos a torna confusa e pouco melódica. Não deixa no entanto de ser uma música interessante, onde a utilização de sons de animais é inspiração directa de "Pet Sounds".

O Reprise de Sgt. Peppers segue a mesma estrutura da introdução mas em tom de despedida e com uma sonoridade mais pesada. As últimas palmas introduzem a que é, discutivelmente, uma das melhores músicas de sempre e um verdadeiro marco na história da pop. "A Day in the Life" é uma fusão de duas músicas, uma de John, outra de Paul, que se complementam na sua diferença. Começa-se com a voz arrepiante de John a descrever eventos que havia visto no jornal, complementanda por magníficos drum fills de Ringo. Os pequenos crescendos culminam depois num crescendo orquestral que, após o climax, introduz a parte de Paul, uma refrescante descrição quotidiana que termina numa queda num sonho, onde está John de novo a descrever-nos eventos e desejos. A música termina, enfim, noutro clímax orquestral, desta vez seguido de um épico acorde em 3 pianos diferentes, o fim mais famoso de qualquer albúm na história da música. De cortar a respiração.

Pode dizer-se que, naquele mês de Junho de 1967, não saiu mais do que um fruto do seu tempo e da mentalidade das suas gentes. Desde a capa, até ao título, passado pelo (falhado) formato conceptual, não há representação mais perfeita do que foram aqueles anos. Este é, no entanto, uma obra que ultrapassa o seu tempo, que para além de dele se ter alimentado, o alimentou... pelo espírito, pela novidade dos temas e pela inovação nas sonoridades.
Para além de ter iniciado oficialmente o "Verão do Amor", Sgt.Pepper´s abriu portas que todos hoje damos como garantidas e banais e mostrou-nos o que nós próprios conseguiríamos fazer. Phil Collins uma vez disse " abriu a porta de um outro quarto, e mostrou que também ali se podia brincar", e se eles brincaram, todo o mundo o podia fazer... e fez.

13/02/2008

Abbey Road . The Beatles

Há histórias que são melhor contadas a partir do fim, e daí sem nenhuma rota definida, ao gosto do contador. Pois bem, começaremos então a história da maior banda de sempre, os Beatles, pelo fim.








Abbey Road, 1969











Em 1969 a banda desmoronava-se lentamente. Depois da desagregação colectiva no White Album e das frustrantes sessões de Let It Be, toda a gente esperava pelo canto do cisne. Ele aconteceu, mas não sob a forma de comunicado ou conferência de imprensa, mas sim de uma obra magistral.

Esta é já uma época rica em frutos da revolução musical. Os Led Zeppelin despontam, os Doors fascinam e Jimi Hendrix brilha, e é nesse contexto que encontramos Paul Mccartney e John Lennon mais brilhantes que nunca, um George Harrison a confirmar o seu brilhantismo e um Ringo virtuoso, que compôs aqui, também, a sua melhor obra na banda.

O Lado A introduz-se com "Come Together", faixa usada por Timothy Leary na sua campanha para governador da Califórnia. Um groove pleno de carisma e sedução onde o baixo nos puxa irremediavelmente para o universo de John. Uma das minhas baterias favoritas em toda a obra do grupo.

O show continua com o portentoso "Something", de George Harrison, a música que Frank Sinatra um dia descreveu como "my favourite Lennon/Mccartney". Apaixonada mas relutante, Something é a prova final do brilhantismo musical de Harrison, que criou aqui, na minha opinião, a mais deliciosa canção de amor dos anos 60. A ter em especial atenção os magníficos arranjos de cordas que principiam antes do fim do primeiro minuto.

"Maxwell´s Silver Hammer" é uma canção típica de Paul Mccartney. Um tema simples (um menino de coro que mata gente com marteladas na cabeça) envolto em complexos e precisamente executados arranjos. Não sendo um ponto alto do albúm, não deixará de arrancar alguns sorrisos.

"Oh Darling!" mostra-nos o outro Mccartney, romântico, arrojado, intenso e puro na expressão dos seus receios e angústias. O melhor que alguma vez se viu cantar a este senhor.

A vez de Ringo brilhar surge com "Octopus´s Garden", uma música aparentemente infatil mas de grande sensibilidade rítmica (ou não fosse ele baterista) e harmónica. Harrison faz uma pequena contribuição no solo de guitarra.

"I Want You (She´s So Heavy)" é, discutivelmente, o "Oh Darling!" de John. Concorde-se ou não, fica mais que patente aqui a sua natureza mais dark, o estilo muito mais introspectivo e o conforto em sair da norma. Ao sermos levados pelo tom hipnótico da guitarra, damos de caras com a sua obsessão prolongada e cíclica (por mais de 7 minutos), num discurso repetido até se tornar ébrio e desesperado, num clímax de loucura apenas interrompido abruptamente pelo final da lado A. Brilhante.

O lado B começa em completa oposição à loucura e freneticidade do primeiro. O doce "Here Comes The Sun" é como um tónico de optimismo e alegria. Começa delicado, em D e prossegue vibrante, apoiado brilhantemente pelas vozes de John e Paul. Juntamente com a posterior "I Can See Clearly Now" de Johnny Nash, esta é daquelas que nunca falhará em nos iluminar um dia mais sombrio.

"Because" é uma pérola de harmonia e produção. Força da sua letra hipnotizante e da brilhantemente executada harmonia vocal, desperta-nos fortes sensações e é das que mais claramente nos consegue fazer viajar. A última nota principia o Medley.

O Medley, que prossegue até ao final do albúm, é um conjunto ininterrupto dos mais variados géneros musicais, todos melodicamente interligados por uma ponte lógica. Começa-se com "You Never Give Me Your Money", uma delícia de Paul Mccartney, plena de variedade e virtuosidade. O lamento começa somente acompanhado de piano mas prossegue usando uma grande variedade rítmica e estilística. A provocante linha "1,2,3,4,5,6,7, all good children go to heaven" não me admira nada que tenha sido influência directa de John.

"Sun King" segue a mesma linha hipnótica de "Because", agora menos orientada para a voz e mais para suaves combinações de baixo e guitarra e sintetizador. A letra, para além das palavras básicas do refrão, figura um balbuciar aleatório de várias palavras em Francês, Espanhol, Italiano e Português.

John Lennon prossegue com duas caracterizações sociais, "Mean Mr.Mustard" e "Polythene Pam", ambas agressivas e vivas. Esta última transporta-se brilhantemente para "She Came In Through the Bathroom Window", escrita por Paul precisamente sobre uma fã que lhe entrou em casa pela janela da casa de banho. Outra prova do talento de Paul como compositor total, usando sonoridades diversas, cada uma com papéis de destaque ao longo ou em determinadas partes da música.

"Golden Slumbers" mostra-nos o seu lado mais clássico e a intensidade que muitos alegaram não ter. Vocalmente e orquestralmente uma das suas mais poderosas composições, apesar de letra original não ser de sua autoria. "Carry That Weight" é uma forma de trazer a melodia de "You Never Give Me Your Money" e complementá-la, sujeitando-a ao comentário mordaz do coro.

E assim chegamos literal e figuradamente ao fim. "The End", uma verdadeira música de despedida, ainda que os próprios não tivessem consciente noção disso. Ringo faz um portentoso solo, ele que os odiava e todos os restantes membros têm expressão singular nas guitarras que tocam, quase que como um jam num concerto ao vivo. É um último showdown conjunto destes 4 grandes artistas que, com a última linha, descrevem bem o que foi a sua carreira, a sua mensagem, e tudo aquilo que significaram para uma geração.

Para além de ser um dos melhores albuns jamais criado e a sua obra mais coesa e bem estruturada, somente ultrapassada, talvez, pelo revolucionário Sgt.Peppers, Abbey Road constitui o glorioso fim da estrada que, adequadamente, é um verdadeiro ponto final na década que transformou o mundo para sempre.

12/02/2008

Música

Eu tenho este problema grave. Esse problema é, decerto, partilhado com um sem número de pessoas. O problema de que vos falo é tão somente a necessidade urgente de partilhar experiências, de partilhar beleza com quem a compreende.

O caso da música é particularmente flagrante. Como pessoa ingénua que sou, acho ser possível que alguém tenha os mesmos sentimentos que eu ao ouvir, por exemplo, a Space Oddity. Essa visão, um pouco distorcida é certo, fez-me mudar completamente a temática (se é que tinha uma) do blog, passando agora, quase exclusivamente, a falar de música.

Considerando a música uma arte pura, e desconsiderando muita da sua dimensão tendencial, julgo que ela deve estimular as pessoas de forma individual, e não sob um qualquer padrão visual imposto pelos mass media.

Julgo eu, também, na minha inocência, que não há estilo ou corrente musical natural (que não seja pré fabricada num escritório) que deva ser desprezada quanto ao seu valor artístico. Podemos, sem dúvida, gostar ou não gostar, mas excluí-la por força da incompreensão não tem sentido.

É nesta dicotomia gostar/respeitar que me vou situar nesta próxima fase. Espero também estimular a vossa compreensão e interpretação dos temas, e apelo à vossa participação nesse sentido.

Albuns que goste, admire ou respeite (talvez outros, numa fase mais avançada deste projecto), vão ser aqui caracterizados segundo o que eu julgo relevante. Não é uma crítica, porque não me julgo com competência para tais aventuras, mas antes uma opinião, uma visão sobre eles. Dentro desta caracterização estará, sem dúvida e quando necessária, uma contextualização histórica.

O objectivo último, é então despertar curiosidades e abrir mentes à grande variedade que habita esta tão bela arte.

Em princípio, e confiando na minha dedicação, estará aqui caracterizado um album por semana, começando... hoje.