13/02/2008

Abbey Road . The Beatles

Há histórias que são melhor contadas a partir do fim, e daí sem nenhuma rota definida, ao gosto do contador. Pois bem, começaremos então a história da maior banda de sempre, os Beatles, pelo fim.








Abbey Road, 1969











Em 1969 a banda desmoronava-se lentamente. Depois da desagregação colectiva no White Album e das frustrantes sessões de Let It Be, toda a gente esperava pelo canto do cisne. Ele aconteceu, mas não sob a forma de comunicado ou conferência de imprensa, mas sim de uma obra magistral.

Esta é já uma época rica em frutos da revolução musical. Os Led Zeppelin despontam, os Doors fascinam e Jimi Hendrix brilha, e é nesse contexto que encontramos Paul Mccartney e John Lennon mais brilhantes que nunca, um George Harrison a confirmar o seu brilhantismo e um Ringo virtuoso, que compôs aqui, também, a sua melhor obra na banda.

O Lado A introduz-se com "Come Together", faixa usada por Timothy Leary na sua campanha para governador da Califórnia. Um groove pleno de carisma e sedução onde o baixo nos puxa irremediavelmente para o universo de John. Uma das minhas baterias favoritas em toda a obra do grupo.

O show continua com o portentoso "Something", de George Harrison, a música que Frank Sinatra um dia descreveu como "my favourite Lennon/Mccartney". Apaixonada mas relutante, Something é a prova final do brilhantismo musical de Harrison, que criou aqui, na minha opinião, a mais deliciosa canção de amor dos anos 60. A ter em especial atenção os magníficos arranjos de cordas que principiam antes do fim do primeiro minuto.

"Maxwell´s Silver Hammer" é uma canção típica de Paul Mccartney. Um tema simples (um menino de coro que mata gente com marteladas na cabeça) envolto em complexos e precisamente executados arranjos. Não sendo um ponto alto do albúm, não deixará de arrancar alguns sorrisos.

"Oh Darling!" mostra-nos o outro Mccartney, romântico, arrojado, intenso e puro na expressão dos seus receios e angústias. O melhor que alguma vez se viu cantar a este senhor.

A vez de Ringo brilhar surge com "Octopus´s Garden", uma música aparentemente infatil mas de grande sensibilidade rítmica (ou não fosse ele baterista) e harmónica. Harrison faz uma pequena contribuição no solo de guitarra.

"I Want You (She´s So Heavy)" é, discutivelmente, o "Oh Darling!" de John. Concorde-se ou não, fica mais que patente aqui a sua natureza mais dark, o estilo muito mais introspectivo e o conforto em sair da norma. Ao sermos levados pelo tom hipnótico da guitarra, damos de caras com a sua obsessão prolongada e cíclica (por mais de 7 minutos), num discurso repetido até se tornar ébrio e desesperado, num clímax de loucura apenas interrompido abruptamente pelo final da lado A. Brilhante.

O lado B começa em completa oposição à loucura e freneticidade do primeiro. O doce "Here Comes The Sun" é como um tónico de optimismo e alegria. Começa delicado, em D e prossegue vibrante, apoiado brilhantemente pelas vozes de John e Paul. Juntamente com a posterior "I Can See Clearly Now" de Johnny Nash, esta é daquelas que nunca falhará em nos iluminar um dia mais sombrio.

"Because" é uma pérola de harmonia e produção. Força da sua letra hipnotizante e da brilhantemente executada harmonia vocal, desperta-nos fortes sensações e é das que mais claramente nos consegue fazer viajar. A última nota principia o Medley.

O Medley, que prossegue até ao final do albúm, é um conjunto ininterrupto dos mais variados géneros musicais, todos melodicamente interligados por uma ponte lógica. Começa-se com "You Never Give Me Your Money", uma delícia de Paul Mccartney, plena de variedade e virtuosidade. O lamento começa somente acompanhado de piano mas prossegue usando uma grande variedade rítmica e estilística. A provocante linha "1,2,3,4,5,6,7, all good children go to heaven" não me admira nada que tenha sido influência directa de John.

"Sun King" segue a mesma linha hipnótica de "Because", agora menos orientada para a voz e mais para suaves combinações de baixo e guitarra e sintetizador. A letra, para além das palavras básicas do refrão, figura um balbuciar aleatório de várias palavras em Francês, Espanhol, Italiano e Português.

John Lennon prossegue com duas caracterizações sociais, "Mean Mr.Mustard" e "Polythene Pam", ambas agressivas e vivas. Esta última transporta-se brilhantemente para "She Came In Through the Bathroom Window", escrita por Paul precisamente sobre uma fã que lhe entrou em casa pela janela da casa de banho. Outra prova do talento de Paul como compositor total, usando sonoridades diversas, cada uma com papéis de destaque ao longo ou em determinadas partes da música.

"Golden Slumbers" mostra-nos o seu lado mais clássico e a intensidade que muitos alegaram não ter. Vocalmente e orquestralmente uma das suas mais poderosas composições, apesar de letra original não ser de sua autoria. "Carry That Weight" é uma forma de trazer a melodia de "You Never Give Me Your Money" e complementá-la, sujeitando-a ao comentário mordaz do coro.

E assim chegamos literal e figuradamente ao fim. "The End", uma verdadeira música de despedida, ainda que os próprios não tivessem consciente noção disso. Ringo faz um portentoso solo, ele que os odiava e todos os restantes membros têm expressão singular nas guitarras que tocam, quase que como um jam num concerto ao vivo. É um último showdown conjunto destes 4 grandes artistas que, com a última linha, descrevem bem o que foi a sua carreira, a sua mensagem, e tudo aquilo que significaram para uma geração.

Para além de ser um dos melhores albuns jamais criado e a sua obra mais coesa e bem estruturada, somente ultrapassada, talvez, pelo revolucionário Sgt.Peppers, Abbey Road constitui o glorioso fim da estrada que, adequadamente, é um verdadeiro ponto final na década que transformou o mundo para sempre.

1 comentário:

Anónimo disse...

Neste disco, confirma-se / revela-se o seguinte: Harrison é um grande guitarrista solo (sem precisar de solos de 2 minutos de duração para o demonstrar, veja-se por exemplo os seus solos económicos em "Come Together") e também um grande compositor ("Something" e "Here Comes The Sun" são espectaculares), e Starr é um grande baterista. Mas isso também já se sabia ("Rain", "Taxman", "She Said She Said", "Tomorrow Never Knows", "A Day In The Life", "Strawberry Fields Forever", "Dear Prudence", "Revolution", etc).

Luís, Porto