14/11/2008

Beautifully Human - Words and Sounds (Vol.2) . Jill Scott

Há artistas que nos impressionam pela pureza das suas palavras, pela orgânica das suas rimas, pela sensualidade das suas melodias mas sobretudo, pela forma como nos levam de encontro à nossa natureza. Uma dessas artistas é sem dúvida Jill Scott, que tem neste segundo albúm o expoente máximo dessa beleza que é ser humano, e da poesia que há em cada um dos nossos sentimentos.







Beautifully Human - Words and Sounds (Vol.2) - 2004







A poetisa de Filadélfia, com esta segunda fornada de palavras e sonoridades consegue ainda uma melhor imersão pelo vasto mundo do que é ser mulher, pelas dimensões do amar e ser amado, da vida quotidiana e pelos matizes do desejo e da tentação.

A complementaridade dos três temas iniciais "I´m Not Afraid", "Golden" e "The Fact is (I Need You), o primeiro ao assumir a responsabilidade pela sua vida, o segundo a celebrá-la e o terceiro a dizer que, apesar disso, a ligação amorosa tem um papel mais do que vital na sua vida, remetem-nos de imediato para esse mundo, retratando uma mulher ciente da sua natureza, ciente do que precisa, claramente esclarecida em relação ao que a faz feliz. A generosa voz e a música a condizer apenas acentuam a força e sinceridade das suas palavras.

Jill Scott neste albúm, mais que uma compositora, é um veículo de honestidade intelectual, uma artista pictorial de sensações comuns a todos nós. "Cross My Mind" é um slow groove de uma sensualidade indescritível, na cumplicidade sexual mas impossibilidade relacional que muitos já experienciámos, e "Bedda At Home", um funk infeccioso que na sua viva e intensa descrição de alguém que desejamos mas não devemos ter, conecta-nos com aquele íntimo que tantas vezes queremos manter fechado. Nessa medida, "Can´t Explain" ainda é mais abrasiva, no arrependimento da traição a alguém que nos amava e na incompreensibilidade de tal acto.
Saindo fora da esfera de si mesma, temos "Family Reunion", um agridoce conto sobre um almoço de família, com todas as tragédias e riquezas de um almoço familiar e "Rasool", a trágica história de um rapaz preso ao triste destino que o espera numa cidade violenta como a sua.

Outros pontos altos do albúm, e uma das minhas favoritas é "Not Like Crazy", no vício repetitivo do seu extraordinariamente belo refrão e na forma cândida como Jill nos canta o progresso de uma história de amor e "Whatever" na celebração do que seria capaz de fazer pelo seu amor.

E é isso que esse albúm constitui, uma celebração da nossa natureza, do quão poderosa pode ser a mensagem do que os nossos sentimentos constituem. E que melhor do que a música e voz de Jill para o transmitirem, pela variedade dos sons de que se serve (Jazz, Funk, Soul...) e pelo quanto ela consegue servir o propósito maior da música, despertar-nos para a nossa própria vida e para as pequenas (?) coisas que a constituem.

31/03/2008

The Beatles (the White Album) . The Beatles

Todas as obras dos Beatles foram mais ou menos consensuais na crítica, consensuais na interpretação da generalidade dos temas e, sobretudo, consensuais no coração das pessoas. Todas menos uma.
Sinal de tempos conturbados, interna e externamente, aparece-nos uma capa branca, expressão nenhuma de quem não consegue convergir numa só imagem e numa só aproximação. Eis a mais escrutinada e polémica obra de sempre.







The Beatles
(the White Album) - 1968









Depois da revolução que havia sido Sgt.Peppers, não havia quem não sentisse um certo aperto com a eventualidade de um novo album. Aquela singularidade era inultrapassável e mundo divorciava-se, enfim, do verão do amor que Pepper havia ajudado a criar.

O que havia de surgir, sob a forma de um duplo album, seria não tanto uma entidade em si, mas um conjunto de músicas, sem sequência lógica (excepto a última), sem estrutura, de todas as formas, de todos os géneros. Seriam no entanto, algumas das melhores do seu vasto reportório.

Numa época pródiga em quantidade de composições, nomeadamente devido à viagem espiritual (para alguns) à Índia, foi decidido não deixar qualquer uma de fora, o que deu origem a um conjunto instável, que nunca sendo coeso, se tornou numa unidade confusa e estilisticamente diversa.

O 1º disco, que começa com o vivo e vibrante "Back in the USSR" de Paul, é talvez o melhor pelo brilhantismo de composições como "While My Guitar Gently Weeps" de George, "Blackbird" de Paul e duas de John, a linda balada "Julia" e o rico "Happiness is a Warm Gun". Não se esgota aqui a qualidade. O invocativo "Dear Prudence" é fantástico na aproximação gentil que faz à vida, "Glass Onion" desafia ironicamente o mito "beatlesco" e Paul tem em "Ob-la-Di Ob-la-Da" uma das suas famosas canções e em "Martha My Dear", "Rocky Racoon" e "Why Don't We Do It In The Road" das mais interessantes, a primeira por força da riqueza musical e a duas últimas pela inovação temática, crueza e originalidade.

O lado 2, apesar de menos interessante musicalmente, é também pleno de inovação. O proto-metaleiro "Helter Skelter" redefiniu a ideia de pesado, "Everybody's Got Something to Hide Except For Me and My Monkey" segue a mesma onda de "Why Don't We...." na simplicidade da letra mas é musicalmente apelativo pela inteligência rítmica e vivacidade. Encontramos até John fazendo um blues repressivo e zangado com "Yer Blues" e orquestrando uma das mais interessantes composições musicais do albúm, com "Sexy Sadie", uma suave nota de culpa, melódica e polémica, devido à associação com o guru Maharishi.
Outras faixas de referência são "Revolution 1", uma mensagem política contra a revolução violenta que muitos achavam necessária naqueles tempos conturbados (procure-se no You Tube uma versão mais acelerada), "Long Long Long", que é uma das mais sub-estimadas canções do grupo e "Savoy Truffle", que prima sobretudo pela piada.

Se não se concordar com a sua qualidade, concorde-se quanto á riqueza e modernidade dos temas, com a sua intemporalidade e, sobretudo, com a forma como esta é uma obra do seu tempo. Nós, que vivemos na era do cd e do mp3, podemos ignorar as faixas (e lados) que menos gostamos, mas aconselho a que ouça, pelo menos uma vez, o album na sua integralidade desconexa, e se aprecie, à "moda antiga", a experiência musical que é uma das obras mais polémicas e marcantes de todos os tempos.

10/03/2008

Grace . Jeff Buckley

Numa década pródiga em figuras míticas, talvez uma das maiores tenha sido Jeff Buckley. Dono de uma voz etérea e de um carisma pouco comum num tempo dominado pelo grunge e pelo desapego, Jeff, muito por força deste albúm, constituiu um autêntico oásis de forma, originando aqui um legado que se movimenta ainda hoje.








Grace, 1994











Todo o albúm gira à volta do portento que é a sua voz, que sendo um verdadeiro instrumento, nos mostra vários estilos e várias cadências. Seria, entanto, injusto caracterizá-lo somente com base nesta qualidade. A instrumentação, fundamentalmente rock, é rica e variada, e as composições são de uma sensibilidade raramente vistas nesta época. No meio de temas loucamente conscientes como "Grace" com os seus mágicos crescendos no refrão e a sua demência final, doces e românticos como "Lover, You Should Have Come Over", encontramos uma tão grande palete de influências e estilos que nunca soa desagregada e difícil. "Lilac Wine" é arrepiante no seu falso minimalismo, "Last Goodbye" é de agradável digestão e, um dos pontos altos do albúm, o fabuloso cover de "Hallelujah" é o confirmar de que esta é realmente uma obra superior.
Pretensão é algo que não falta a um album de estreia, que ao mesmo tempo se tornou o seu final. A complexidade e a coesão de todos os temas quase nos obriga a especular no que este homem teria feito, tivesse vivido mais tempo.
É sem dúvida, para mim, uma das obras definitivas da década de 90, não só pela invulgar qualidade dos recursos utilizados, nomeadamente da sua ridiculamente fabulosa voz, mas muito por culpa de um ecletismo que nunca o torna monótono ou repetitivo.

Obrigatório.

02/03/2008

Revolver . The Beatles

Para George Harrison, esta não é mais que a parte dois de Rubber Soul uma vez que são albuns deveras similares na sua concepção. Permitam-me discordar de Sir Georgie, mas a meu ver estamos na presença Rubber Soul + 1. É sem dúvida mais eléctrico e mais eclético e, embora não tenha hinos como In My Life, é mais regular na qualidade. Apesar de, pessoalmente, não ter qualquer preferência entre um e o outro, considero este um produto mais coeso, mais pretensioso e ainda mais adulto. Eis o rock em territórios inexplorados até então.











Revolver, 1966







A modernidade ataca logo com "Taxman", onde George se volta a superar e onde a secção rítmica é absolutamente brilhante (especial atenção ao baixo). Uma ode aos roubos do Estado, onde a personalidade é vincada na guitarra solista, que acompanha toda a música. Esta guitarra já se tinha visto nas anteriores obras de George, e é muito característica sua.
Segue-se um caminho totalmente novo, "Eleanor Rigby". Uma das mais importantes peças de Paul Mccartney. Orquestra de cordas e voz, ingredientes mais do que suficientes para criar uma atmosfera triste, densa e de fortes emoções. Absolutamente marcante.
Pessoalmente uma das minhas favoritas, "I´m Only Sleeping" fala sobre os prazeres de dormir, e na distância que se sente em relação à realidade do mundo quando se viaja durante o sono. É uma canção que nos envolve na sua simplicidade, que nos aconchega na sua cor e vibrância. A voz de John é absolutamente encantadora e a honestidade do pedido que nos faz é encarecedora. Obviamente que não se podia deixar de referir o solo de guitarra invertida, cuja ideia surgiu por acidente, mas que mostra a vontade de explorar novos sons e novas maneiras de fazer música. E resulta, tal como toda esta faixa.
"Yellow Submarine" dispensa qualquer tipo de apresentação, e "Love You To" é para mim uma obra indiana menor comparada com a que George mostraria em Sgt.Peppers. No meio destas duas há, no entanto, uma música que em muito lembra Rubber Soul. "Here, There and Everywhere" em nada fica a perder para as composições mais doces do albúm anterior. Paul Mccartney tem realmente um poder qualquer em fazer composições que nos fazem sentir felizes. Quente, serena e tremendamente romântica.
"She Said" é outra obra prima. Uma das melhores letras, numa das melhores baterias, numa canção que muda de ritmo a cada segmento, mas que ao mesmo tempo nunca perde integridade e algum exotismo. Se AINDA havia dúvidas acerca da genialidade de John Lennon como compositor, elas desapareceram aqui.
De "Good Day Sunshine" não sou particularmente fã, apesar do seu optimismo inabalável, não considero que seja particularmente interessante, mas de "Your Bird Can Sing" sou, especialmente na forma como nos agarra imediatamente com aquele duplo riff e nos leva a fazer uma curta viagem. A letra não é muito interessante, mas o alegre clima fala por si.
"For No One" é uma triste música sobre a dificuldade em acabar uma relação, e a dificuldade em quebrar a ligação sentimental com a pessoa que se ama. A composição é interessante e serve de bom tónico para quebrar o optimismo das músicas anteriores.
Mas "Dr. Robert" sim, é verdadeiramente interessante. Primeiro porque é sobre um médico que prescreve drogas, depois porque se ouvem harmonias vocais completamente novas, e um segmento ("Well, well, well, you´re feeling fine") que remete para o uso das referidas drogas. Tematicamente abriam-se anda mais os horizontes.
"I Want To Tell You" é o perfeito exemplo de música a acompanhar a letra. Apesar de não gostar muito, admiro a forma como a falta de auto confiança, a dúvida são acompanhadas por aquelas inversões no piano e pela desarticulada harmonia vocal que complementa a narrativa.
Outra música tradicional de Paul Mccartney é "Got to Get You Into My Life", de que, francamente, não são fã, a não ser que esteja alcoolizado. É daquelas músicas interessantes de ouvir só por ouvir, num dia triste. Exactamente o contrário de "Tomorrow Never Knows", a única música escrita sobre uma "trip", sempre na mesma nota, e com os seus inúmeros elementos, algo aleatórios que nos remetem para a mente caótica de quem está, exactamente, no meio de uma viagem alucinogénica. A letra é inspirada no "Tibetan Book of the Dead", de Timothy Leary, o padrinho do LSD. Apesar de parecer sempre igual, há pormenores a reter, como os pratos na bateria de Ringo e a produção na voz de John. Uma das músicas mais revolucionárias do seu tempo.

Revolver é, sem dúvida, o passo lógico a dar depois de Rubber Soul. Mais experimentação, uma sonoridade mais moderna, novas temáticas e, sobretudo, a mesma qualidade musical, o mesmo appeal, a mesma capacidade de entreter e fascinar ao mesmo tempo. Considerado por alguns como o melhor album de todos os tempos, esta é, sem qualquer dúvida, a confirmação da genialidade criativa de uma banda que se construiu à volta de conceitos passados, e se catapultou definitivamente para o futuro com obras deste calibre. E melhor ainda estaria para vir.

26/02/2008

Rubber Soul . The Beatles

O albúm que marca o ponto de viragem, tanto técnico como tématico. É aqui que se abrem novos horizontes e se acaba definitivamente com a ambiência teeny-pop. O estúdio deixa de ser um ponto de paragem e passa a ser laboratório de alquimia, onde novos sons iriam aparecer e toda uma nova maturidade iria despontar.









Rubber Soul, 1965










Já cansados da "Mania" e a ficar impacientes face às suas imposições castrantes, os Beatles decidiram fazer uma pausa mais prolongada. O encantamento inicial desvanecia e agora, com a aprendizagem, todo um novo universo lhes passava em frente dos olhos. Muito por culpa de Dylan, que haviam conhecido na América, começaram agora a virar as suas composições para si mesmos, para a dimensão séria das suas relações e até para a dispersão que sentiam nas suas mentes.

O machismo invertido de "Drive My Car", com o seu jazz piano do refrão, e o intimisto exótico de "Norwegian Wood" alertavam-nos de imediato para todas estas mudanças. A cítara de George em "Norwegian Wood" é o ingrediente essencial de uma composição marcada pela ambiguidade, e pelo relato intimista de um "affair" de sentido único. A presença feminina seria, no entanto, irradiada em "Nowhere Man", com a suas intricadas harmonias vocais e o seu poder de fazer, ao mesmo tempo, uma auto-análise e uma crítica à apatia quotidana de uma sociedade que só agora começava a irradiar inovação.
"Think for Yourself", a melhor composição de George até à altura, continua na mesma onda de pensamento, criticado quem não tem auto crítica e quem segue as pisadas de outrém sem questiona, contribuindo para o vazio que "Nowhere Man" já tinha referido. De nota a lead guitar, que acompanha eficientemente a narrativa.
"The Word" é, talvez, a única música confessamente composta sob o efeito de marijuana. O amor salvar-te-à, o meu piano psicadélico far-te-à dançar, e somos extremamente positivos na nossa visão (mocada) do mundo. Amén a isso.
No que se refere a músicas românticas, temos duas peças muito diferentes, ambas marcadas por um estilo completamente diferente do que haviamos visto até aí. "Michelle" é de Paul, e portanto é doce, romântica e apaixonada, com elementos dissimuladamente franceses a apimentar ambiência. "Girl" é de John, em down-tempo, densa e dolorosa, mas nem por isso é menos apaixonada. De notar a panóplia de elementos que a compõem, e que a tornam riquíssima e um dos melhores temas do albúm.
Mas esse título estaria sempre e inevitavelmente reservado para "In My Life", que pessoalmente, considero umas das mais bonitas músicas jamais feitas. Não há ninguém que fique indiferente ao tema, e que com ele não se identifique, e não há ninguém que fique indiferente à sua doçura. A sua aparente simplicidade é contagiante, e apaixonante é a forma com nos transmite o calor da mensagem, que faz todo o sentido, em todas as alturas do mundo, seja para quem for.

Rubber Soul é intimista do início ao fim, e pela primeira vez se mostra a verdadeira identidade destes 4 rapazes, que aqui apelam, ainda com toda a energia, a outras dimensões do que vai dentro de cada um de nós, reflexo do que começava a tornar-se importante dentro deles. Uma obra verdadeiramente universal, como foram todas, daqui em diante.

16/02/2008

Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band . The Beatles

Descrito uma vez como "um momento decisivo na história da civilização ocidental", este albúm é, simplesmente, o ponto mais alto de um período de experimentação que tinha começado com Rubber Soul. É o cúmulo brilhante das novas tendências e uma revolução na maneira de ouvir música. Eis o que muitos consideram o mais influente albúm de sempre.








Sgt. Pepper´s Lonely Heart Club Band, 1967








Estamos no âmago da época psicadélica, da revolução cultural, onde novas ondas de pensamento e uma forte propensão à experimentação estavam no ar. O movimento hippie começava aganhar forma e a juventude do baby boom começava, finalmente, a mostrar a sua garra.
Entretanto a maneira de fazer música começava a mudar aos poucos, em grande medida pela influência de Bob Dylan, das suas letras e temas introspectivos e mordazes e de um constante brotar de novas bandas que surgiam prontas a inovar.

Entretanto, os Beatles, que haviam abandonado os espetáculos ao vivo para dedicarem mais atenção à qualidade artística da sua música, demoravam a lançar novo material. Revolver já havia saído há muito tempo, e a especulação era muita acerca de um possível esgotamento criativo ou até mesmo do fim da banda. A fasquia estava alta, especialmente depois do lançamento do eclético "Pet Sounds" dos Beach Boys, que em muito havia de influenciar a instrumentação do novo albúm. No entanto, na altura, ninguém tinha noção do que iria sair dos estúdios de Abbey Road.

A capa, eminentemente psicadélica, cheia de vivacidade e cor, funciona como que um "mood-setter" para um conceito de albúm que, apesar de não se confirmar plenamente, não deixa de ser convidativo. A introdução, homónima do albúm, é um autêntico prólogo ao vivo, ritmado e intenso, que apresenta Sgt.Pepper e a sua banda. Este dá seguimento ao "act" de Billy Shears, que é Ringo cantando "With a Little Help From My Friends", um lamento optimista face às agruras da vida e aos julgamentos exteriores, devidamente acompanhado pelas vozes em coro dos seus amigos. Até ao Reprise, não vamos ter mais qualquer menção ao conceito que parecia seguir forte até aqui e que surgiu, lembre-se, com o objectivo de levar um concerto ao vivo à casa de cada um.

Facilmente se esquece o desmoronar do conceito, com "Lucy in the Sky With Diamonds", um hino à psychadelia onde somos convidados a viajar por um estranho mundo, repleto de cores, texturas e vibrações. Composta maioritariamente por John Lennon e baseada num desenho do filho Julian, esta é uma música que verdadeiramente nos faz viajar e nos pinta quadros coloridos na mente, especialmente nas partes em que a guitarra acompanha, nota a nota, a voz (acelerada) de John. A instrumentação também é de particular nota, prestem atenção à variedade de sons que conseguem distinguir.

"Getting Better", de Lennon e Mccartney, é outro hino ao optimismo face à adversidade. John tem aqui, para tipicamente sua, mordaz e sarcástica linha "It can´t get no worse", uma nota autobiográfica depois do segundo refrão, onde admite ter sido abusivo para as mulheres da sua vida. Interessante a forma como, de repente, nessa parte, toda a música fica mais escura e o tom menos colorido. Excelente.

"Fixing a Hole" trata de dispersão mental e dúvida existêncial, procurando-se um rumo, algo não derivativo, para se obter auto definição. Cheia de variações melódicas que acompanham a narrativa, e com uma excelente utilização do cravo (harpsichord), esta é uma música revolucionária não só pela musicalidade mas como pelo tema abordado.

"She´s Leaving Home" é uma magnífica composição harmónica de Paul Mccartney sobre a fuga de casa de uma adolescente a quem se havia dado tudo, menos liberdade. Particularmente focada na reacção dos pais, especialmente nos lamentos do refrão, este é outro tema que foge completamente de qualquer conceito mainstream daquele tempo. Brilhante.

Mas mesmo revolucionária é "For the Benefit of Mr.Kite", totalmente inspirada num poster de circo do século XIX, encontrado por Lennon numa loja de velharias. Virtualmente TODA a letra foi directamente extraída do poster. A criação de uma ambiência adequada ao majestoso caos circense é conseguida com o recurso a um sem número de elementos impensáveis, mesmo na altura. Gravações revertidas, harmónicas, cravo, sons de feiras populares, tudo se conjuga de forma magnífica para pintar um verdadeiro quadro de som, no qual somos facilmente imersos ao longo de dois minutos e meio de pura magia. Assim acaba do lado A.

"Within You and Without You" é a melhor música de influência indiana de George (do conjunto de cerca de 3 ou 4 que possuem tais elementos). Sensual e com uma linda letra, juntou de forma brilhante dois mundos totalmente diferentes e opostos.

"When I´m Sixty-Four" não é exactamente uma música do seu tempo uma vez que tinha escrita por Paul já há muito tempo, mas é doce e humilde como poucas. A prova de que pouca pretensão e simplicidade também fazem uma muito boa música. Atenção à instrumentação.

Mais complexa e brilhantemente produzida é "Lovely Rita", sobre uma polícia de trânsito americana que (diz-se...) fascinou Paul. Apesar de não ser particular fã da letra, gosto imenso da orquestração vocal, da fantástica bateria e da parte final, onde parecem todos estar sob o efeito de drogas alucinogénicas. Tema riquíssimo.

"Good Morning" não é exactamente uma favorita, isto porque me parece que o uso de imensos complementos sonoros e efeitos a torna confusa e pouco melódica. Não deixa no entanto de ser uma música interessante, onde a utilização de sons de animais é inspiração directa de "Pet Sounds".

O Reprise de Sgt. Peppers segue a mesma estrutura da introdução mas em tom de despedida e com uma sonoridade mais pesada. As últimas palmas introduzem a que é, discutivelmente, uma das melhores músicas de sempre e um verdadeiro marco na história da pop. "A Day in the Life" é uma fusão de duas músicas, uma de John, outra de Paul, que se complementam na sua diferença. Começa-se com a voz arrepiante de John a descrever eventos que havia visto no jornal, complementanda por magníficos drum fills de Ringo. Os pequenos crescendos culminam depois num crescendo orquestral que, após o climax, introduz a parte de Paul, uma refrescante descrição quotidiana que termina numa queda num sonho, onde está John de novo a descrever-nos eventos e desejos. A música termina, enfim, noutro clímax orquestral, desta vez seguido de um épico acorde em 3 pianos diferentes, o fim mais famoso de qualquer albúm na história da música. De cortar a respiração.

Pode dizer-se que, naquele mês de Junho de 1967, não saiu mais do que um fruto do seu tempo e da mentalidade das suas gentes. Desde a capa, até ao título, passado pelo (falhado) formato conceptual, não há representação mais perfeita do que foram aqueles anos. Este é, no entanto, uma obra que ultrapassa o seu tempo, que para além de dele se ter alimentado, o alimentou... pelo espírito, pela novidade dos temas e pela inovação nas sonoridades.
Para além de ter iniciado oficialmente o "Verão do Amor", Sgt.Pepper´s abriu portas que todos hoje damos como garantidas e banais e mostrou-nos o que nós próprios conseguiríamos fazer. Phil Collins uma vez disse " abriu a porta de um outro quarto, e mostrou que também ali se podia brincar", e se eles brincaram, todo o mundo o podia fazer... e fez.

13/02/2008

Abbey Road . The Beatles

Há histórias que são melhor contadas a partir do fim, e daí sem nenhuma rota definida, ao gosto do contador. Pois bem, começaremos então a história da maior banda de sempre, os Beatles, pelo fim.








Abbey Road, 1969











Em 1969 a banda desmoronava-se lentamente. Depois da desagregação colectiva no White Album e das frustrantes sessões de Let It Be, toda a gente esperava pelo canto do cisne. Ele aconteceu, mas não sob a forma de comunicado ou conferência de imprensa, mas sim de uma obra magistral.

Esta é já uma época rica em frutos da revolução musical. Os Led Zeppelin despontam, os Doors fascinam e Jimi Hendrix brilha, e é nesse contexto que encontramos Paul Mccartney e John Lennon mais brilhantes que nunca, um George Harrison a confirmar o seu brilhantismo e um Ringo virtuoso, que compôs aqui, também, a sua melhor obra na banda.

O Lado A introduz-se com "Come Together", faixa usada por Timothy Leary na sua campanha para governador da Califórnia. Um groove pleno de carisma e sedução onde o baixo nos puxa irremediavelmente para o universo de John. Uma das minhas baterias favoritas em toda a obra do grupo.

O show continua com o portentoso "Something", de George Harrison, a música que Frank Sinatra um dia descreveu como "my favourite Lennon/Mccartney". Apaixonada mas relutante, Something é a prova final do brilhantismo musical de Harrison, que criou aqui, na minha opinião, a mais deliciosa canção de amor dos anos 60. A ter em especial atenção os magníficos arranjos de cordas que principiam antes do fim do primeiro minuto.

"Maxwell´s Silver Hammer" é uma canção típica de Paul Mccartney. Um tema simples (um menino de coro que mata gente com marteladas na cabeça) envolto em complexos e precisamente executados arranjos. Não sendo um ponto alto do albúm, não deixará de arrancar alguns sorrisos.

"Oh Darling!" mostra-nos o outro Mccartney, romântico, arrojado, intenso e puro na expressão dos seus receios e angústias. O melhor que alguma vez se viu cantar a este senhor.

A vez de Ringo brilhar surge com "Octopus´s Garden", uma música aparentemente infatil mas de grande sensibilidade rítmica (ou não fosse ele baterista) e harmónica. Harrison faz uma pequena contribuição no solo de guitarra.

"I Want You (She´s So Heavy)" é, discutivelmente, o "Oh Darling!" de John. Concorde-se ou não, fica mais que patente aqui a sua natureza mais dark, o estilo muito mais introspectivo e o conforto em sair da norma. Ao sermos levados pelo tom hipnótico da guitarra, damos de caras com a sua obsessão prolongada e cíclica (por mais de 7 minutos), num discurso repetido até se tornar ébrio e desesperado, num clímax de loucura apenas interrompido abruptamente pelo final da lado A. Brilhante.

O lado B começa em completa oposição à loucura e freneticidade do primeiro. O doce "Here Comes The Sun" é como um tónico de optimismo e alegria. Começa delicado, em D e prossegue vibrante, apoiado brilhantemente pelas vozes de John e Paul. Juntamente com a posterior "I Can See Clearly Now" de Johnny Nash, esta é daquelas que nunca falhará em nos iluminar um dia mais sombrio.

"Because" é uma pérola de harmonia e produção. Força da sua letra hipnotizante e da brilhantemente executada harmonia vocal, desperta-nos fortes sensações e é das que mais claramente nos consegue fazer viajar. A última nota principia o Medley.

O Medley, que prossegue até ao final do albúm, é um conjunto ininterrupto dos mais variados géneros musicais, todos melodicamente interligados por uma ponte lógica. Começa-se com "You Never Give Me Your Money", uma delícia de Paul Mccartney, plena de variedade e virtuosidade. O lamento começa somente acompanhado de piano mas prossegue usando uma grande variedade rítmica e estilística. A provocante linha "1,2,3,4,5,6,7, all good children go to heaven" não me admira nada que tenha sido influência directa de John.

"Sun King" segue a mesma linha hipnótica de "Because", agora menos orientada para a voz e mais para suaves combinações de baixo e guitarra e sintetizador. A letra, para além das palavras básicas do refrão, figura um balbuciar aleatório de várias palavras em Francês, Espanhol, Italiano e Português.

John Lennon prossegue com duas caracterizações sociais, "Mean Mr.Mustard" e "Polythene Pam", ambas agressivas e vivas. Esta última transporta-se brilhantemente para "She Came In Through the Bathroom Window", escrita por Paul precisamente sobre uma fã que lhe entrou em casa pela janela da casa de banho. Outra prova do talento de Paul como compositor total, usando sonoridades diversas, cada uma com papéis de destaque ao longo ou em determinadas partes da música.

"Golden Slumbers" mostra-nos o seu lado mais clássico e a intensidade que muitos alegaram não ter. Vocalmente e orquestralmente uma das suas mais poderosas composições, apesar de letra original não ser de sua autoria. "Carry That Weight" é uma forma de trazer a melodia de "You Never Give Me Your Money" e complementá-la, sujeitando-a ao comentário mordaz do coro.

E assim chegamos literal e figuradamente ao fim. "The End", uma verdadeira música de despedida, ainda que os próprios não tivessem consciente noção disso. Ringo faz um portentoso solo, ele que os odiava e todos os restantes membros têm expressão singular nas guitarras que tocam, quase que como um jam num concerto ao vivo. É um último showdown conjunto destes 4 grandes artistas que, com a última linha, descrevem bem o que foi a sua carreira, a sua mensagem, e tudo aquilo que significaram para uma geração.

Para além de ser um dos melhores albuns jamais criado e a sua obra mais coesa e bem estruturada, somente ultrapassada, talvez, pelo revolucionário Sgt.Peppers, Abbey Road constitui o glorioso fim da estrada que, adequadamente, é um verdadeiro ponto final na década que transformou o mundo para sempre.